VIRTUDES
Leitura
AS
FAGULHAS DE MALDIZER
Já
passava da meia-noite quando decidi tomar um café numa noite destas. Em um
bloco de anotações, um monte de coisas por dizer, ideias, sensações e até
preocupações. Enquanto a caneta de ponta porosa não anunciava nenhuma nova
palavra, abri um livrinho de orações para refletir os episódios que se
descortinavam intensamente nestas semanas árduas de trabalho-hospital,
hospital-trabalho.
Duas
mulheres que não estavam tão perto decidiram mudar de mesa e sentaram-se quase
ao meu lado. Até então, os minutos transcorriam com a tranquilidade da mente
que se apaziguava com a emoção das palavras a serem escritas. Só que uma voz
quebrou o encanto. Era a da interlocutora da mesa ao lado.
Inevitável
não ouvi-la. A voz estridente, nas falas em 300 quilômetros por hora, anunciava
uma conversa desconcertante. Havia ali uma energia estranha, que se dissipava
como espinhos lançando a esmo fagulhas de maldizer. Logo ela disse: “Você sabe
a fulana? Então, veio me abraçar e não queria me largar mais. Não me soltava de
jeito nenhum! Uma falsa! Falsaaa, falsaaaa”, dizia e, em cada repetição, a
ênfase era maior. Parecia que sua voz reverberava numa vibração perturbatória.
Eu já não conseguia me concentrar.
Falou
sobre alunos, pais. Deduzi que fosse professora ou que trabalhasse numa escola.
Talvez fosse funcionária pública. O fato era que boa parte do que saía dela
eram ofensas prescritas, julgamentos e sentenças arbitrárias. Nada de positivo.
Era como se houvesse uma nuvem negra pairando sobre a mesa, embora a outra
mulher pouco falasse.
Comecei
a escrever algumas palavras, mas ainda assim a vibração que vinha dali parecia
que se agigantava diante de mim, impossibilitando que houvesse algo maior do
que a vergonha alheia, do que uma tênue tristeza diante da falta de amor
daquelas frases construídas em uma contínua desconstrução do outro. E tantos de
nós temos de conviver com pessoas assim: cheias de tudo o que é ruim e vazias
de tudo o que é bom.
Também
nós, muitas vezes, nos atiçamos em falar mal dos outros, conduzindo conversas
para o vexatório fim que nos condena. Se podemos calar, por que maldizer? Por
que vibrar na energia negativa se temos tanto a nos sintonizar na positiva?
O
café estava tomado e havia nele o gosto de compaixão que devemos ter diante do
condenável dos outros e de nós mesmos. Como o escrito do calendário: “Não há
força mais poderosa no universo que o amor.” E se aquela mulher tivesse um pouco
mais, nem que fosse uma xícara, sem dúvida, não teria despejado tanta amargura
na aurora que se anunciava. Portanto, que tomemos mais café, mais xícaras do
que é bom. Com amor, com a doçura das coisas e do que a gente traz em nós.
Mônica Kikuti
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