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sexta-feira, 25 de outubro de 2013

EDUCAÇÃO - A educação pode mudar a sociedade?

Educação

A educação pode mudar a sociedade?

O Brasil tem sido fundamental para que se reconheça a importância da educação na ruptura de relações de dominância e para a criação de programas dirigidos a essa ruptura.

Quero começar dizendo que nossas formas comuns de perguntar se a educação pode mudar a sociedade têm alguns graves problemas conceituais, empíricos e políticos. Primeiro, é importante entender que a educação faz parte da sociedade. Ela não é algo alheio, que fique fora. Na verdade, a educação é um conjunto fundamental tanto de instituições quanto de relações sociais e pessoais. Ela é tão básica a uma sociedade quanto o são lojas, pequenos negócios, franquias de restaurantes, fábricas, fazendas, instituições de saúde, empresas de advocacia, companhias de seguro, bancos, trabalho doméstico não remunerado no lar e tantos outros lugares em que as pessoas e o poder interagem. 
No entanto, existem outras questões que decisivamente fazem dela não um conjunto “externo” de instituições e práticas. Tomemos as escolas como um exemplo. Mesmo que tenhamos a crença ortodoxa de que apenas instituições econômicas estão no cerne de uma sociedade e que antes de podermos mudar as escolas precisamos mudar a economia, as escolas são lugares onde as pessoas trabalham. Pessoal de manutenção de prédios, professores, administradores, enfermeiros, assistentes sociais, secretários, psicólogos, orientadores, cozinheiros, guardas, assistentes de ensino — todos esses grupos executam trabalho remunerado direta ou indiretamente nos lugares que chamamos de escolas. Cada um desses cargos estabelece um conjunto de relações de trabalho e distinções de classe vinculadas a si. E cada um é estratificado não apenas por classe, mas também por raça e gênero. 
Nesse sentido, o ensino com frequência é visto como trabalho remunerado de mulheres, assim como as enfermeiras escolares e as pessoas que geralmente servem a comida no refeitório da escola. Em muitas áreas, essas mesmas mulheres que servem a comida não são brancas, assim como os assistentes de ensino em muitas áreas urbanas. O trabalho de manutenção de prédios geralmente é feito por homens. As secretárias escolares geralmente são mulheres. Não apenas o processo de cada um é diferente — embora exista uma significativa dinâmica de proletarização e intensificação do trabalho dos professores (Apple, 2012): sem dúvida, a melhor descrição do ensino que já ouvi foi a de uma vizinha, professora do ensino médio, que disse: “Hoje, mais uma vez, eu não tive tempo nem para ir ao banheiro!”. Existem também diferenças significativas no pagamento e no prestígio social aliado a cada um. Logo, seria equivocado ver as escolas como diferentes da “sociedade”. 
Como locais de trabalho remunerado, elas são partes integrantes da economia. Como locais de trabalho diferenciado, elas reconstituem (e às vezes questionam) classe, gênero, raça e hierarquias de “habilidade”. E, como instituições que historicamente serviram como motores de mobilidade da classe trabalhadora em termos de empregar universitários ascendentes de grupos que, muitas vezes, são vistos como “não muito dignos de valor” ou mesmo como “desprezíveis”, tais como pes­soas não brancas, elas têm desempenhado um importante papel como arenas na luta em torno de aspectos como avanço econômico de classe, gênero e raça.
Minha história pessoal de ter nascido muito pobre, passar das escolas pobres para escolas noturnas para me tornar professor e ter feito pós-graduação na Columbia University documenta partes dessa luta. Ela é o resultado tanto de cooptação (dar a algumas crianças pobres e da classe trabalhadora a chance de se realizarem como indivíduos, mas sem mudar radicalmente as estruturas que criam o empobrecimento) quanto de luta bem-sucedida. 
Todavia, não é apenas como lugares de trabalho que as escolas compõem a economia. Elas também são lugares que estão cada vez mais sendo colocados no mercado através de políticas de privatização, mercantilização e competição. Em muitos países, a remuneração dos professores está cada vez mais baseada no desempenho dos alunos em testes padronizados. E as próprias escolas estão tornando-se fontes de lucro (Burch 2009; Ball 2007, 2012). As crianças também estão cada vez mais sendo compradas e vendidas como “públicos cativos” para propagandear “reformas” como o Chanell One, serviço de televisão com fins lucrativos e com comerciais obrigatórios que capturou um grande número de sistemas escolares nos Estados Unidos.
Talvez tenha sido demonstrado que as escolas virtuais comerciais, um conjunto cada vez mais lucrativo de instituições educacionais, não melhoram os resultados dos alunos, mas isso não impediu seu rápido crescimento ou sua habilidade de gerar grandes quantidades de investimento (Apple, em produção). Portanto, interromper a venda das escolas e dos alunos é uma forma de ação que desafia a economia. Esta é uma das razões pelas quais muitos de nós temos trabalhado com outras pessoas em uma aliança com ativistas comunitários em todo o país para deter a mercantilização das instituições educacionais e sua transformação em fontes de lucro. 
As lutas culturais também são cruciais e, embora estejam profundamente ligadas a elas, não podem ser reduzidas a questões econômicas sem causar dano à complexidade da vida real (Apple e Buras, 2006). Tomemos a luta dos afro-americanos (e afro-brasileiros) contra uma sociedade profundamente racista. As escolas têm desempenhado papéis centrais na criação de movimentos por justiça em geral, mas têm sido fundamentais para a construção de mobilizações sociais de mais ampla escala nas comunidades negras.
Esses movimentos coletivos transformaram nossas definições de direitos, de quem deve tê-los e do papel do governo na garantia desses direitos. As escolas são fundamentais tanto para criar mobilizações duradouras quanto para realçar habilidades e disposições de interrupção baseadas na construção e defesa das normas de cuidado, de amor e, em especial, de solidariedade mútua em toda a comunidade (Lynch, Baker e Lyons, 2009). Por isso, elas também são lugares onde o que significa ser um cidadão crítico ativo é aprendido por meio da participação ativa. 
Entretanto, isso não é tudo. A educação desempenha um papel social claramente essencial na formação de identidades, um ponto que é reconhecido com ênfase na literatura sobre a relação entre ser marginalizado nas escolas e o crescimento do aprisionamento dos jovens pobres e marginalizados e no material que critica a super-representação dos alunos negros na educação especial (Alexander, 2012). Ou seja, os alunos passam grande parte de suas vidas dentro dos prédios que chamamos de escolas. Eles aprendem sobre relações autoritárias — e às vezes as desafiam. Eles experimentam o trabalho emocional de gerenciar a apresentação de si mesmos e também de estar com outros que são tanto iguais quanto diferentes.
Transformações no conteúdo e na estrutura dessa organização-chave apresentam efeitos duradouros em termos de disposições e valores que nos influenciam ou não, em quem pensamos que somos e em quem pensamos que podemos nos tornar. Cuidado, amor e solidariedade —ou a ausência deles — estão entre os blocos constitutivos de nossa identidade. Essa questão tem desempenhado um papel crucial, por exemplo, no trabalho de estudiosos e ativistas afro-americanos e afro-brasileiros que, por um lado, passaram sua vida desafiando os modos como as instituições educacionais dominantes e os seus currículos “mal-educavam” os jovens negros e, por outro, lutaram com êxito pra criar instituições que constroem identidades coletivas mais poderosas e transformadoras. 
Sinceramente, para mim, essa posição não é apenas intelectual e política, mas também baseada em experiências pessoais muito intensas. Eu, por exemplo, tenho muitas lembranças do modo como meu filho Paul foi tratado de maneira diferente ao longo de toda a sua trajetória escolar simplesmente por ser afro-americano e dos efeitos realmente prejudiciais que isso teve tanto em seu senso de identidade quanto em sua compreensão do que era possível que ele se tornasse. 
Contudo, as escolas e outros ambientes educacionais também fazem parte do aparelho cultural da sociedade de outras formas além de construir identidades (positivas ou negativas). Elas são mecanismos fundamentais na determinação do que é socialmente valorizado como “conhecimento legítimo” e o que é visto apenas como “popular”. Em seu papel de definir grande parte do que é considerado conhecimento legítimo, elas também participam do processo em que determinados grupos adquirem status, enquanto outros permanecem sem reconhecimento ou minimizados (Apple, 2004; em produção).
Assim, também nesse aspecto, as escolas são o centro das lutas em torno de uma política de reconhecimento sobre raça, etnicidade, classe, gênero, sexualidade, capacidade, religião e outras importantes dinâmicas de poder. Cada vez mais, sob a influência de movimentos direitistas em lugares como o Arizona, nos Estados Unidos, onde ocorrem ataques danosos aos cursos de estudos étnicos e a remoção de livros e currículos multiculturais críticos, escolas e currículos tornaram-se locais de intensos conflitos em torno da memória coletiva e da amnésia coletiva, aspectos igualmente voltados para a ação política e educacional. 

Sobre a resposta à pergunta no Brasil
Para os leitores brasileiros, é essencial lembrar que o Brasil tem desempenhado um papel muito importante na resposta a essa pergunta para muitas pessoas em todo o mundo. Ele tem ocupado um lugar central no reconhecimento da importância da educação como ponto para a interrupção de relações de dominância e para a criação de programas dirigidos a essa interrupção. Porto Alegre, em especial, com suas políticas de Orçamento Participativo e da Escola Cidadã, tem demonstrado como um sistema escolar pode ser reorganizado para contrariar esses efeitos prejudiciais, ser o centro de mobilizações da comunidade, desafiar o que conta como conhecimento oficial, ensinar o Estado e criar condições para uma cidadania muito mais ativa entre os pobres e aqueles que comumente são considerados os “outros” da sociedade.
Porto Alegre é um exemplo da importância de uma educação econômica e culturalmente crítica que tem como um de seus maiores elementos desafiar identidades socialmente injustas e mudar as identidades de alunos, professores e comunidades. Classe, raça, deficiência —todos esses aspectos e outros mais foram considerados com muita seriedade (Apple, 2013; Gandin, 2009).  
No entanto, como muitos de vocês sabem, durante a última década, as políticas de educação crítica que se mostraram tão importantes em Porto Alegre foram alvo de ataques da Direita e tornaram-se mais limitadas em seu impacto e em sua ambição. A Direita também tem uma resposta para a pergunta se a educação pode mudar a sociedade — e essa resposta tem sido um enfático “sim”. De fato, como indiquei, a Direita demonstrou reiteradas vezes que compreende plenamente como usar a educação como um elemento importante em suas tentativas de radicalmente transformar a sociedade (Apple, 2006, 2013).  
Porém, isso torna o Brasil ainda mais importante para o mundo inteiro. Mesmo diante desses ataques, seja em nível nacional, seja internacional, Porto Alegre (e espera-se, mais uma vez, todo o estado do Rio Grande do Sul), continua sendo vista como exemplo de um senso de possibilidade. Isso demonstra que as lutas relacionadas à educação que continuam sendo travadas no Brasil têm um poder transformador dentro e fora das fronteiras da nação. Essas políticas e práticas críticas adquiriram vida própria, mesmo quando estão sendo atacadas no Brasil. O fato de os neoliberais estarem tão profundamente preocupados com a mudança na educação para que ela atenda às suas necessidades aponta para o quanto eles estão preocupados com o poder de uma educação que atende às necessidades dos pobres e desfavorecidos. O fato de estarem tão preocupados significa que vitórias na educação foram alcançadas.  
Propus que pensássemos de maneira diferente sobre se a educação transforma a sociedade. Se as lutas na educação são lutas na sociedade, então, em vez de sermos cínicos, deveríamos voltar a nos dedicar à defesa dessas vitórias e continuar o que Raymond Williams (1961) chamou tão sabiamente de “longa revolução” dentro e fora da educação. 
 
Michael W. Apple é professor na Universidade de Wisconsin, Madison. apple@education.wisc.edu

Crédito da imagem:
Foto de ©iStockphoto.com/kali9




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