ECOLOGIA
Relação com a natureza e educação ambiental
Bernard Charlot & Veleida Anahi da Silva
"A
ecologia, quando se mora na cidade, é uma coisa, mas, quando rodamos em
estradas de terra e quando não há trabalho porque não se tem direito a derrubar
árvores, é outra". Estas são as palavras de um professor universitário que
morou muito tempo no Estado do Acre. Embora seja biólogo, questiona fortemente
o discurso ecologista. Encontramos um caso similar há alguns anos: uma amiga
telefonou para Veleida para informar que a floresta estava queimando no Estado
de Roraima. "E morreram índios no incêndio?", perguntou Veleida. Essa
resposta indignou a amiga, que acusou Veleida de não gostar da floresta, como
se, sob as árvores, não houvesse homens...
Escutando alguns discursos,
tem-se a impressão, às vezes, de que o homem e a natureza são atualmente
inimigos, não podendo um deles sobreviver se o outro não morrer ou não se
debilitar. Há uma solução teórica para esse aparente conflito de interesses: chama-se
"desenvolvimento sustentável". O conceito tem o apoio de todos, mas,
a partir do momento em que o debate ultrapassa a palavra, ressurge a oposição
entre aqueles que estão "do lado da Natureza" e aqueles que estão
"do lado do desenvolvimento econômico". Enquanto não se vencer essa
oposição, será ilusório esperar que se construa um controle ecológico de nosso
mundo. Trata-se, portanto, de uma questão central para uma educação ambiental,
para a qual buscamos contribuir apresentando algumas reflexões teóricas e
alguns resultados de pesquisa.
A identidade do homem e da natureza
Em A ideologia alemã, Marx e Engels (1953)
sustentam que há "identidade entre o homem e a natureza". Não é uma
idéia evidente hoje em dia, tendendo-se mesmo a colocá-las em oposição. Mas
qual é o raciocínio que está por trás disso?
"A condição primeira de toda história humana
é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos (...). Toda história deve
partir dessas bases naturais e de sua modificação pela ação dos homens ao longo
da história". Os homens produzem seus meios de existência, o que os
distingue dos animais. Ao produzirem esses meios de existência, estão
produzindo o meio no qual vivem. Em outras palavras, o homem não vive mais em
uma natureza original - que não existe mais -, vive em uma natureza
transformada por sua ação, "modificada pela história". A
"natureza que antecede a história humana (...) de nossos dias não existe
mais em lugar algum, exceto talvez em alguns atóis australianos". O homem
se encontra "sempre diante de uma natureza que é histórica e de uma
história que é natural". A história do homem é natural, pois é a história
da forma como os homens, coletivamente, produzem, transformando a natureza, o
mundo no qual vivem. A natureza, por sua vez, é "histórica" porque o
que chamamos de "natureza" não é uma natureza original, mas o
resultado da ação histórica dos homens sobre a natureza. As paisagens
"naturais" que vemos, os campos e as florestas onde passeamos
carregam a marca do homem. Criticando Feuerbach, Marx e Engels escrevem:
"E essa atividade, esse trabalho, essa criação material constante dos
homens, enfim, essa produção, é a base de todo o mundo sensível tal como vemos
hoje em dia, de tal modo que, se interrompêssemos isso, que fosse por um ano
apenas, não somente Feuerbach veria uma enorme mudança no mundo natural, como
também deploraria muito rapidamente a perda de todo o mundo humano e de sua
própria faculdade de contemplação, e até a de sua própria existência".
Não se pode pensar, pois, nem a natureza nem o
homem sem pensar a ação humana sobre a natureza. Há uma "identidade entre
o homem e a natureza". Isso não é uma simples fórmula. Por um lado, a ação
humana sobre a natureza é uma ação coletiva - portanto, na natureza, tal como
nos aparece em uma dada época, pode-se ler as formas de organização sociais do
homem, sendo as relações com a natureza "condicionadas pela forma da
sociedade e vice-versa". Por outro lado, essa ação coletiva de
transformação da natureza transforma os próprios homens - trata-se do processo
que Marx chama de práxis. Não se pode, pois, pensar separadamente a natureza, a
organização social, o tipo de indivíduo que existe em um dado momento da
história.
Historicamente, como se apresenta essa relação do
homem com a natureza? Evidentemente, é impossível reconstruir aqui essa
história, mas gostaríamos de comentar alguns momentos particularmente
significativos.
A natureza aparece, inicialmente, como
"inteiramente estranha, potente e incontestável" (Marx e Engels,
1953). A relação com a natureza é então, ao mesmo tempo, religiosa e mágica - o
que significa, como observa Robert Lenoble (1969), que os homens nunca foram
ignorantes a respeito da natureza, eles já têm algum conhecimento dela, já
começam a humanizá-la. Essa humanização, porém, toma a forma de deuses, que
podem ser influenciados pela magia, e já aí, então, essa relação entre o homem
e a natureza tende a se confundir com as relações sociais dos homens entre si.
"A causalidade mágica regula não somente as relações dos fenômenos entre
si, mas suas relações com os homens e as relações dos homens uns com os
outros" (Lenoble, 1969).
Essa relação com a natureza é vista no candomblé.
Dessa forma, Iansã é, simultaneamente, "rainha dos raios, dos ciclones,
furacões, tufões, vendavais", "orixá do fogo, guerreira e
poderosa", "dona das paixões", "guia dos espíritos
desencarnados, senhora dos cemitérios" (Barcellos, 1995). Iansã é uma
força da natureza cujo elemento básico é o fogo e ela expressa tudo o que é
fogo, seja da natureza física (ciclones), da natureza social (guerra) ou da
natureza psíquica (paixões). Notemos que ela simboliza também a morte (com
Obaluaê), isto é, o inverso do fogo: nossa relação com a natureza é
fundamentalmente ambivalente. Essa tentativa de dominar e humanizar a natureza
toma nos gregos uma forma filosófica: "A natureza de Platão e de
Aristóteles é uma natureza feita para o homem e pelo homem (...), é totalmente
organizada para a tranqüilidade e o bem-estar da alma" (Lenoble, 1969). A
natureza imprevisível, portanto perigosa, é substituída na filosofia grega por
um "mundo de harmonia total", um cosmos regido por leis. Também em
Epicuro, mas de uma outra forma, é o conhecimento da natureza que nos permite
viver uma vida segura e feliz. "Se não fôssemos perturbados pelo temor dos
fenômenos celestes e pela morte, inquietos ao pensar que esta poderia se
interessar por nosso ser, se ignorássemos os limites das dores e dos desejos,
não teríamos necessidade de estudar a Natureza", diz Epicuro (citado por
Lenoble, 1969). Concluindo História da idéia de natureza, Lenoble afirma:
"A natureza sempre apareceu no pensamento dos homens como construção, não arbitrária,
evidentemente, mas cujo plano é intensamente influenciado pelos desejos,
paixões, tendências, e também pela reflexão humana". Conclusão que
converge com a de Marx e Engels: em qualquer época histórica, a concepção da
natureza é construída a partir da relação do homem com a natureza, sendo
"a natureza em si" somente abstração.
Em outras épocas, a tentativa de humanização da
natureza era científica e técnica. Essa tentativa pode tomar distintas formas -
do século XVII até os dias de hoje -, mas sempre sustentada pela idéia de
Progresso. A natureza não é mais uma potência benfeitora ou, ao contrário,
perigosa, que rege o destino do homem, mas uma grande mecânica - nos séculos
XVII e XVIII - da qual o homem pode conhecer suas leis, escritas em uma linguagem
matemática e da qual pode se tornar mestre e possuidor. Assim, torna-se
possível a idéia de uma natureza externa ao homem - a matéria de um lado, o
espírito de outro, como em Descartes - e a de uma luta entre a natureza e o
homem. Essa exterioridade, porém, é também o resultado de um trabalho de
separação produzido pelo homem, que construiu essa idéia da natureza. É,
portanto, também a expressão de uma certa relação do homem com a natureza,
relação marcada por uma vontade de dominação.
Essa relação de dominação enfrentou, ao longo da
história, reações contrárias. O romantismo, por exemplo, representa uma delas,
o nazismo também. Para compreender essas formas de relações com a natureza, é
interessante buscar aporte nos trabalhos do sociopsicanalista Gérard Mendel,
especialmente em La révolte contre le père (1968).
Como inúmeros autores observaram, a natureza é
considerada freqüentemente como Mãe. Aliás, a própria etimologia do termo
"natureza" remete ao fato de nascer ou de fazer nascer: a palavra
latina natura deriva de natus (nascido). Há, pois, em nosso inconsciente, um
vínculo profundo entre a idéia de natureza e a de maternidade. G. Mendel
explica que a relação dos homens com a natureza coloca em questão as imagos
maternas e paternas.
O que são imagos? São representações inconscientes
dos personagens com os quais estabelecemos nossas primeiras relações
intersubjetivas, reais e fantasmáticas: imago materna, paterna e fraterna. A
primeira relação "é caracterizada por uma indistinção parcial ou total do
sujeito e do objeto" (G. Mendel): o bebê não distingue, ou muito pouco,
seu corpo e o de sua mãe. A mãe é fonte de vida, de alimento, de amor; essa
relação é interiorizada no inconsciente em uma imago da mãe "boa". As
frustrações inevitáveis acarretam, todavia, uma agressividade reacional contra
a mãe, interiorizada como imago da mãe "má". Por se fundirem, essas
relações e as imagos que produzem provocam angústia. A identificação com o pai,
fonte de uma imago paterna, vem depois na constituição do Eu e protege dessa
angústia. A imago paterna "boa" "é a de um pai justo, forte,
livre e benevolente" (Mendel, 1968).
Segundo Mendel, "os povos anteriores ao
período paleolítico viveram suas relações com o meio ambiente de um modo
primário, projetando no mundo exterior suas imagos maternas". Esse mundo
exterior, a natureza, toma então a forma de uma Mãe Natureza muito forte: mãe
"boa" (que nutre) e, ao mesmo tempo, mãe "má" (agressiva).
Mais tarde, no paleolítico - idade dos primeiros instrumentos em pedra lascada -,
as mudanças são vividas no Inconsciente como vinculadas à imago paterna. De uma
maneira mais geral, o desenvolvimento da modernidade, da tecnologia, da ciência
e da racionalidade, está relacionado no inconsciente a um poder do pai sobre a
mãe arcaica, o que permite gerar a angústia, mas é acompanhado de uma
culpabilidade em relação à mãe-natureza assim "mutilada".
Dessa forma, assiste-se às vezes uma revolta contra
o pai (fantasmático) e volta-se a valorizar a mãe (fantasmática e ambivalente).
O romantismo constitui uma sublimação1 artística das imagos maternas, que são
valorizadas em detrimento das imagos paternas. Assim, Rousseau escreve, em As
confissões: "Ó Natureza, ó minha mãe, estou aqui sob tua guarda somente;
não há resquício de homem hábil e desleal que se interponha entre mim e
ti" (citado por Mendel, 1968). Fica claro que Rousseau escolheu neste caso
a Natureza e não a técnica, a Mãe e não o Pai. Mas os românticos não esquecem
que a natureza é mãe "boa" e, ao mesmo tempo, mãe "má".
Vigny escreve simultaneamente: "As grandes florestas e os campos são
vastos asilos" e, dando voz à Natureza, "dizem que sou uma mãe e sou,
na verdade, um túmulo" (citado por Mendel, 1968).
O nazismo representa uma outra forma de revolta
contra o pai (fantasmático) em nome da Mãe natureza. Hitler diz:2 "O homem
nunca deve cair no erro de acreditar que alcançou verdadeiramente a dignidade
de senhor e mestre da natureza", "A natureza eterna se vinga
impiedosamente quando se transgridem seus comandos". Essa natureza assim valorizada
é aquela que simboliza a imago da mãe "má", agressiva: "A
humanidade, segundo a natureza, (...) elimina os fracos para dar lugar aos
fortes". A defesa da Natureza contra o Progresso pode chegar na forma da
fusão romântica, mas também na da monstruosidade representada pelo nazismo...
A Natureza não é um objeto eterno e imutável. Na
forma que a conhecemos em cada época, é o resultado da ação coletiva de
transformação do mundo pelos homens. É também, em cada época, lugar de projeção
dos desejos e das angústias e, no inconsciente humano, o lugar onde se
confrontam desejo de fusão e aspiração à dominação.
Hoje em dia há uma corrida em busca da dominação
cega da natureza, que é também, na lógica analisada por Marx e Engels, uma
busca de dominação dos homens e uma tentativa de impor um modelo de sociedade.
Não é por acaso que os Estados Unidos, ao mesmo tempo, recusam-se a assinar o
Protocolo de Quioto, declaram guerra em diversos pontos do mundo e querem impor
a todos o modelo de democracia norte-americana. Tal empreitada tem por base,
evidentemente, os interesses econômicos das multinacionais. Mas, se nos
perguntamos sobre suas raízes psicológicas, pode-se dizer que se trata de uma
aliança entre a imago paterna e a imago da mãe "má", entre a força
apoiada na tecnologia e a morte.3
Contra tal empreitada se posiciona o protesto
ecológico. Este toma, porém,
duas formas.
Há um discurso ecológico romântico, nova forma de
revolta contra o pai e em nome da mãe "boa".4 Trata-se de um retorno
arcaico à Natureza como mãe "boa", atacada pelo pai (a ciência, a
racionalidade, etc.). Esse discurso remete a uma aspiração de fusão com uma
natureza original e imutável e vê no homem somente um assassino e na
racionalidade somente uma agressão. Esse discurso é incompatível com a idéia de
"desenvolvimento sustentável" e leva a um impasse, pois opõe o homem
e a natureza, em vez de pensar as formas possíveis de sua identidade no mundo
atual.
O outro discurso ecológico é aquele que adere
realmente ao projeto de desenvolvimento sustentável e que se recusa a opor o
homem à natureza, a origem à ciência, a vida à técnica. Posicionamo-nos, assim,
a favor dessa ecologia, que supõe uma aliança do pai e da mãe "boa".
É uma ecologia que se baseia na consciência da unidade do homem e da natureza,
na convicção de que essa unidade se tornou tão íntima e tão reflexiva - com o
domínio da genética - que o desenvolvimento só pode ser hoje o do homem e da
natureza. Não há atualmente desenvolvimento possível do homem sem
desenvolvimento da natureza.
A floresta amazônica é um símbolo para cada uma
dessas posturas: para as multinacionais predadoras, e especialmente para os
Estados Unidos, é uma jazida de riqueza biológica; para a ecologia romântica, é
o símbolo da Mãe original, fonte da vida; para a ecologia do desenvolvimento
sustentável, é o desafio da necessária reconciliação entre o Homem-Natureza e o
progresso.
Pensamos ter mostrado que a questão fundamental - a
que deve estar no centro da educação ambiental - é a questão da relação dos
homens com a natureza. Qual é hoje a relação dos jovens com a natureza? Que
tipo de relação a educação ambiental busca construir?
A relação dos jovens com a natureza
Qual é hoje a relação dos jovens com a natureza? Um questionário (com
muitas questões abertas) foi distribuído para 824 alunos brasileiros e
franceses, de zona urbana ou da região amazônica (São Paulo, Cuiabá e Alta
Floresta, no Brasil, e Saint-Denis e Épinay-sur-Seine, na França),
escolarizados em ensino público ou privado, de 5a e 8a séries do ensino fundamental
e do 3o ano do ensino médio (ou o equivalente na França) (Da Silva, 1999). A
maioria desses alunos tem entre 10 e 20 anos.
Apresentamos aqui somente alguns resultados dessa
pesquisa. Esses jovens brasileiros e franceses têm uma boa consciência ecológica,
como veremos a seguir.
·
"Você
acredita que a natureza esteja hoje ameaçada em todo o mundo?" 94,3%
responderam "sim"; 5,3% responderam "não" (0,4% não
responderam).
·
"O
que lhe parece mais correto? 1. O homem tem direito de fazer da natureza o que
bem entender para poder viver e criar seus filhos. 2. Há uma solidariedade
entre o homem e a natureza e o homem necessita dessa solidariedade para
viver". 5% dos alunos escolheram a primeira resposta; 94,5%, a segunda.
Nestas duas questões, não aparece uma diferença
significativa entre brasileiros e franceses. Os alunos de zona urbana e os do
ensino médio optam um pouco mais que os outros pela segunda resposta, mais
ecológica.
A consciência ecológica desses jovens continua
forte quando opomos a natureza à produção humana de seus meios de
sobrevivência, para retomar as palavras de Marx e Engels. No entanto, a
convicção ecológica cai quando introduzimos a questão do emprego e do dinheiro,
e ainda mais quando introduzimos a idéia de alimentar os filhos.
·
"Uma
fábrica vai ser instalada em (nome do lugar da pesquisa), mas ela vai jogar
produtos químicos na água. Você pensa que: 1. O governo deve dar autorização,
uma vez que isso traz emprego e dinheiro; 2. O governo deve proibir sua
instalação para preservar a natureza de (nome do lugar)". 13,5% dos alunos
optaram pela primeira resposta e 86,5%, pela segunda. Quanto mais elevado o
nível social, maior é a percentagem em favor da proibição (87,3% na
"categoria 3", 81,2% na "categoria 1" e 76,6% entre os
filhos de desempregados). Notemos, porém, que mesmo os filhos de desempregados
se pronunciam maciçamente contra a instalação da fábrica.
·
"Se
nascem muitas crianças em um país, temos o direito de queimar alguns trechos da
floresta para poder alimentá-los?" 31,1% dos alunos respondem
"sim" e 67,8%, "não" (0,8% não respondem). A maior
incidência de respostas positivas está entre os alunos mais próximos da
floresta amazônica, os de Alta Floresta. A diferença entre as respostas dos
meninos (69,1% dizem "não") e das meninas (66,9% dizem
"não") é pequena.
Teriam esses alunos conhecimentos científicos na
área da ecologia? Foram-lhes propostos 12 enunciados de tipo científico, aos
quais deveriam responder por "verdadeiro" ou "falso". A
percentagem média de respostas corretas é de 72%, o que é mais tranqüilizador.
No entanto, alguns resultados mostram que a educação ambiental, em especial no
Brasil, ainda não é totalmente satisfatória:
- Para 10 enunciados de cada 12, os resultados dos
franceses são melhores do que os dos brasileiros (mesmo tratando-se de alunos
franceses escolarizados em zonas de educação prioritárias, ou seja, em meio
urbano desfavorável).
- Para 6 de cada 12 enunciados, os resultados dos
alunos do 3o ano do ensino médio são inferiores àqueles da 8a e da 5a séries
(considerando alunos brasileiros e franceses misturados). Tudo se passa,
portanto, como se o saber científico na área ecológica fosse frágil e
desaparecesse com o tempo. É surpreendente que 39% dos alunos escolarizados,
com mais de 10 anos de estudo, respondem "verdadeiro" para a afirmação
que diz que "a vida na Terra existe há 1998 anos", 33% dentre eles
não sabem que "as plantas têm necessidade de luz para crescer" e 59%
ignoram que "há espécies de seres vivos que já desapareceram da
Terra".
- Um desses enunciados diz: "Os seres vivos
que vivem no mesmo meio influenciam-se uns aos outros". Esse enunciado é
fundamental para compreender as relações entre os homens e a natureza. Ora,
apenas 58% dos alunos respondem que é verdadeiro (53% dos brasileiros). Quase a
metade dos alunos, portanto, ignora o que é a base de um projeto de
desenvolvimento sustentável.
Detenhamo-nos agora no mais surpreendente desses
resultados. Ele aparece quando se comparam as respostas a duas questões.
·
"As
árvores são seres vivos?" 92,8% dos alunos respondem que "sim" e
7,6%, que "não" (0,5% não respondem).
·
"Quando
uma flor está seca, pode-se dizer que está morta?" 42% dos alunos
respondem "sim" e 57,6%, "não" (0,4% não respondem).
Assim, quase todos os alunos sabem que uma árvore é
um ser vivo, mas a maioria nega que uma flor seca esteja morta. A contradição é
especificamente brasileira, ainda que o problema atinja também um terço dos
franceses - 95,4% dos brasileiros e 83,6% dos franceses respondem que as
árvores são seres vivos; 34,9% dos brasileiros, no entanto, respondem que a
flor seca está morta contra 67,8% dos franceses.
Há nesse caso um exemplo interessante de obstáculo
epistemológico, no sentido de Gaston Bachelard: é difícil pensar a morte de um
ser vivo, mais no Brasil do que na França. Mas quais são as explicações dos
alunos? Para explicar que as árvores são seres vivos, 76,5% evocam o ciclo da
vida (mas 2,5% evocam esse mesmo ciclo para explicar por que as árvores não são
seres vivos...). Para explicar por que a flor não está morta, eles utilizam
argumentos de tipo antropomórfico: a flor tem necessidade de cuidados e de
carinho, de ar e de água, ela não está morta, mas cansada ou triste, de
qualquer forma, ela poderá reviver. Tais respostas são mais freqüentes entre os
alunos brasileiros, mas são encontradas também entre os franceses. Ao ler essas
respostas, fica claro que, se a flor não pode ser considerada morta, é porque
apresenta as características do ser humano e porque, desse ponto de vista, é
doloroso imaginá-la morta. De uma certa forma, se ela não pode estar morta, não
é por mesmo que seja um ser vivo, mas porque é precisamente um ser vivo - vivo
como um ser humano.
O que aparece aqui sob a forma de um obstáculo
epistemológico é essa identidade entre o homem e a natureza que analisamos
anteriormente de um ponto de vista teórico. A relação dos homens com a natureza
leva a uma concepção de natureza, é isso o que vemos acontecer com os alunos.
Como então essa relação é ensinada pela escola?
A relação dos homens com a natureza
nos manuais brasileiros
Para saber qual tipo de educação ambiental os alunos brasileiros
recebem, seria preciso pesquisar nas salas de aula, em muitas turmas, em
lugares e em níveis diversos, o que suporia uma equipe e meios mais refinados.
Uma outra via foi, portanto, adotada: a análise de manuais.5 Foram analisados
dois manuais brasileiros supostamente muito usados em sala de aula, uma vez que
foram várias vezes reeditados. Chamaremos esses manuais aqui de A e B, pois
nosso interesse é científico e não comercial. Por não podermos nos estender em
demasia, trataremos mais especificamente das principais conclusões da análise.
Comecemos pelo manual A, manual
de ciências de 5a série. É organizado em 25 capítulos: 21 tratam de questões
científicas, os capítulos 22 e 23 são dedicados à ecologia (19 páginas das 206
do manual), 24 e 25 à higiene e à saúde. Esperamos que professores e alunos
tenham tempo para chegar até esses últimos capítulos e para se deterem um pouco
neles...
A análise dos 21 primeiros
capítulos nos leva a três conclusões principais:
Em primeiro lugar, em todos esses
capítulos, o homem e sua ação sobre a natureza não aparecem muito no próprio
texto e, quando são evocados, é no mesmo patamar de outros
"componentes" da natureza. O homem existe nas "leituras
complementares", cujo status em termos de saber é inevitavelmente
desprezado pelo aluno (e talvez até mesmo pelo professor).
Em segundo lugar, o manual opera
uma série de disjunções, deixando ao professor e ao aluno a tarefa de
construírem a noção de meio, de trocas no meio e de interdependências. Essas
noções, evidentemente, serão objeto dos dois capítulos dedicados
especificamente à questão ecológica, mas as noções científicas de base não
poderão ser evocadas, portanto, senão como tendo sido já abordadas: os
conhecimentos científicos não constam nos capítulos sobre a ecologia (nem mesmo
nos capítulos finais dedicados à higiene e à saúde). Há uma organização pouco
propícia à construção de uma consciência ecológica apoiada em um saber
científico.
Em terceiro lugar, por fim, o
autor propõe implicitamente, em sua indignação seletiva, uma escala de
gravidade quanto aos crimes ambientais: para ele, são condenáveis, acima de
tudo, o desmatamento e os incêndios. A leitura complementar proposta ao final
do Capítulo 7 explica, aliás, de maneira bem explícita, que o Brasil é um dos
países que menos polui do ponto de vista do gás carbônico, mas que vem em
primeiro lugar em termos de desmatamento. A questão ecológica tende a ser,
assim, reduzida à da floresta.
A análise do primeiro capítulo
(22), dedicado à ecologia, mostra que o meio é apresentado como meio natural, e
não como um meio atualmente humanizado. Primeiramente, o homem quase não
aparece nesse capítulo; em segundo lugar, o manual desenvolve uma representação
unilateral das relações entre os seres vivos e o meio: o fato de os seres vivos
transformarem o meio passa quase despercebido - se não fosse por uma nota
complementar de um texto complementar, quando o homem degrada radicalmente esse
meio, provocando a eutrofização dos lagos. Por fim, esse manual oferece uma
representação estática e não histórica do meio.
No segundo capítulo dedicado à
ecologia (Capítulo 23), o homem aparece finalmente, mas somente na forma de um
predador criminoso, fútil, um pouco estúpido, "que contribui muito para a
exterminação de certas espécies e para a quebra do equilíbrio ecológico".
Ele mata os elefantes pelo marfim de suas presas, o pavão e o faisão para
produzir belas plumas e os rinocerontes para "a fabricação de botões,
peças de decoração e produtos que supostamente têm virtudes medicinais".
Com isso, a conclusão: "Protejamos nossa flora e nossa fauna. Olhe com
carinho para as árvores e para os animais. Nossa vida também depende deles,
pois, no final das contas, somos apenas uma espécie a mais que integra as tão
diversas comunidades que habitam os ecossistemas do planeta TERRA". O
homem é somente uma "espécie a mais", sem especificidade em suas
relações com a natureza, senão a de ser constituído por criminosos ecológicos
ignorantes e fúteis...
A partir daí, não surpreende que
a questão da desigualdade e da pobreza - por sua vez, essencial quando se fala
sobre ecologia - não conste nesse manual. Quando, em dois capítulos dedicados à
higiene e à saúde, o autor fala de diferentes tipos de doenças, da higiene, da
necessidade de uma boa alimentação, das vacinas, do esporte, das roupas limpas,
etc., ele não os relaciona com a pobreza, como se, no Brasil, a boa alimentação
e as roupas limpas dependessem apenas da consciência ecológica individual...
Tal manual utiliza uma
representação romântica da natureza: aquela da mãe "boa" ("olhe
com carinho", "nossa vida depende também deles") agredida por um
pai criminoso e estúpido. Ele passa ao largo da questão fundamental: a
especificidade das relações entre a natureza e os homens, que, precisamente,
não são "uma espécie a mais".6
O manual B apresenta um outro
tipo de relação entre o homem e a natureza. Trata-se de um manual dedicado
especificamente à educação ambiental e que pode ser utilizado igualmente na 5a
série. Constitui-se de 10 capítulos.
Logo no início, apresenta a
questão do "homem a serviço da ecologia", já que com esse título
introduz o primeiro capítulo. Parte da noção de meio e o considera como um meio
humano: "nossa terra", o homem e "seu próprio planeta".
Aliás, o ser humano é apresentado nas ilustrações do manual (e pode ser uma
mulher...), ao passo que, no manual A, sua representação era muito rara.
Ao longo do manual B, o homem
está no centro da reflexão sobre o equilíbrio e o desequilíbrio dos sistemas.
Não se trata mais do caçador de rinocerontes e de elefantes, mas do homem
atual, que usa inseticidas, detergentes, carros, etc. Esse homem aparece
também, nessa obra, como destruidor, mas, diferentemente do outro manual,
compreende-se por que ele destrói, e essa destruição é relacionada com sua ação
criadora (culturas, máquinas agrícolas, adubo, etc.). A espécie humana é,
assim, apresentada em sua singularidade. O autor apresenta claramente a
questão: "Somos diferentes das outras espécies?". E responde: "O
homem construiu uma sociedade organizada para melhor se proteger", é capaz
de produzir seus alimentos pela cultura e pela criação de animais, sabe
conservá-los, sabe também se proteger. A ênfase é dada, desse modo, à atividade
criadora do homem no e sobre o meio. Mas nem por isso o manual deixa de manter
a tensão entre o poder e a dependência do homem: "A ciência ampliou os
limites de nossa existência a tal ponto que esquecemos que fazemos parte da
natureza e de seus ciclos e que, em última instância, sempre dependeremos
desta". O homem é, simultaneamente, destruidor e produtor, poderoso e
dependente.
Esse homem vive em sociedade, daí
a pergunta: "Por que o homem destrói a natureza?". O autor explica
que se trata de um efeito do crescimento populacional do mundo, mas também do
"tipo de sistema econômico e político que os estados modernos
adotaram". O Capítulo 7 inicia por uma revisão histórica, evocando
especialmente a escravatura, os indígenas e a falta de uma proteção eficaz dos
ecossistemas pelas leis e pelas instituições governamentais. O Capítulo 8, da
mesma forma, apresenta um mapa do mundo que mostra que a América do Norte, a
Europa e a Ásia são os principais responsáveis pelo efeito estufa e pelo buraco
da camada de ozônio, que as principais catástrofes ecológicas foram produzidas
na Europa (incluindo a ex-URSS) e que o principal problema ecológico do Brasil
é o desmatamento. O manual evita, no entanto, limitar o aluno à idéia de que a
questão ecológica no Brasil se reduz à do desmatamento da Amazônia. A respeito
da Amazônia, evoca não somente o desmatamento e os incêndios, como também as
usinas hidrelétricas, a extração de minerais, a construção de cidades e de
rodovias. Além disso, insiste também na ameaça ecológica que pesa sobre as
outras regiões do Brasil: campos cerrados, Pantanal, Mata Atlântica - "um
dos ecossistemas mais devastados" -, etc.
Não estamos dizendo com isso que
esse manual seja perfeito, pode-se lamentar, por exemplo, o fato de não
discutir a questão da desigualdade e da pobreza; mas ele apresenta de forma
clara e pertinente a relação específica, de criação e de destruição, da espécie
humana com a natureza. Essa deve ser, em nossa opinião, a base de uma educação
ambiental que visa ao desenvolvimento sustentável.
NOTAS
1. A sublimação é o processo pelo
qual uma pulsão deriva de seu objetivo sexual para objetos socialmente
valorizados. A respeito de imago e sublimação, ver J. Laplanche e J.-B.
Pontalis. Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: PUF, 1973.
2. Citações de Hitler retiradas do livro de G. Mendel (1968) que analisa Mein
Kampf.
3. Georges W. Bush é filho de um presidente da República (o Pai como força,
potência) e, antes mesmo de ser ele próprio presidente dos Estados Unidos, já
era conhecido como o campeão de execuções por pena de morte (a Mãe vingadora).
Notemos que Ben Laden e, de uma maneira mais geral, as atuais formas de terrorismo,
representam também uma aliança do pai e da mãe "má": a mãe (qualquer
fundamentalismo reivindica a origem!) se vinga do pai (o mundo ocidental, sua
racionalidade e democracia) voltando contra ele suas próprias armas
(ataques com aviões, domínio dos circuitos financeiros, etc.).
4. Atualmente, não encontramos um pensamento ecológico relacionado à mãe
"má". Mas a tentação existe e se expressa às vezes, raramente é bem
verdade, por atos de violência (houve alguns assassinatos perpetuados em nome
da defesa dos animais ou da recusa do aborto, ou seja, como vinganças da
mãe-natureza).
5. Essa parte, bem como a anterior, apóia-se no DEA (mestrado) de Veleida Anahi
Da Silva.
6. Esse tipo de relação com a natureza é encontrado em outros manuais. Koury,
em 1992, que analisa a 7ª ed. de um manual do segundo grau, chega a conclusões
muito próximas das apresentadas aqui. Cf. Koury, D.M.M. A ecologia no livro
didático de segundo grau: uma reflexão para o biólogo. Monografia para o curso
de Especialização em Educação Ambiental, Departamento de Educação, Universidade
Federal de Mato Grosso, 1992.