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terça-feira, 7 de maio de 2013

VIRTUDE - EU SEI, MAS NÃO DEVIA


VIRTUDE
EU SEI, MAS NÃO DEVIA

        Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
         A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista, logo se acostuma a não olhar para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquecendo o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
        A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar por ganhar dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
        A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando um dor aqui, uma revolta acolá. SE o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada a gente molha só pé e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
        A gente se acostuma à poluição. A luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. As bactérias de água potável, à contaminação da água do mar.  À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galos na madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
        A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado por que está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
        A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz. Então aceitando as negociações de paz aceita ler todo dia de guerra, dos números, da longa duração.
        A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A  sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de vilta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
        A gente acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas a ver anúncios, a ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
        A gente se acostuma para não se ralar na aspereza para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar, se perde por si mesmo.
Marina Colassanti

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