VIRTUDE
EU SEI, MAS NÃO DEVIA
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não
devia.
A
gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista,
logo se acostuma a não olhar para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as
cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a
luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquecendo o sol, esquece o ar,
esquece a amplidão.
A gente se acostuma a pagar por tudo o
que deseja e o que necessita. E a lutar por ganhar dinheiro com que paga. E a
ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que
valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para
ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a coisas demais,
para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando um dor
aqui, uma revolta acolá. SE o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila
e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada a gente molha só pé e
sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no
fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai
dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma à poluição. A luz
artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. As
bactérias de água potável, à contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não
ouvir passarinhos, a não ter galos na madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a acordar de manhã,
sobressaltado por que está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A
cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter
vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e
ler sobre a guerra. E aceitando a guerra aceita os mortos e que haja números
para os mortos. E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de
paz. Então aceitando as negociações de paz aceita ler todo dia de guerra, dos
números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia
inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso
de vilta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente acostuma a andar na rua e ver
cartazes. A abrir as revistas a ver anúncios, a ligar a televisão e assistir a
comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido,
desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma para não se ralar na
aspereza para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se
acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que de tanto acostumar,
se perde por si mesmo.
Marina Colassanti
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