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sexta-feira, 24 de maio de 2013

EDUCAÇÃO - Uma perspectiva transdisciplinar das relações pedagógicas

Educação
Uma perspectiva transdisciplinar das relações pedagógicas

Fernando Hernández

Adotar um enfoque transdisciplinar permite conceber a aprendizagem como um processo de indagação, no qual se relacionam diferentes campos de conhecimento e de saberes

A coordenação da escola, em seu afã de avançar na atualização pedagógica, sugeriu-me que explorasse junto aos professores possibilidades de estabelecer alguns vínculos com a perspectiva educativa dos projetos de trabalho (PEPT). A fragmentação e o grande número de matérias do currículo, os horários, as condições de trabalho dos professores e o fantasma do vestibular apareceram como barreiras para organizar nexos entre as disciplinas. Nexos que poderiam ser estabelecidos a partir de estratégias de pesquisa compartilhadas ou da possibilidade de coordenação de alguns professores em torno de um problema emergente passível de ser abordado de diferentes perspectivas disciplinares.
          A impressão que me ficou da conversa foi que as dificuldades decorrentes da rigidez da “gramática” do ensino médio (organização rígida e fragmentada de tempos e espaços, livros didáticos como fonte predominante de informação, professores com trabalho em várias escolas, grupos numerosos de jovens nas salas de aula, demandas das universidades, identidade dos docentes vinculada às suas disciplinas, etc.) sobrepunham-se aos desejos de colaboração e à consideração de que poderia haver outras maneiras de aprender. As dificuldades são ainda maiores quando é preciso responder, através da educação escolar, a um mundo volátil, incerto, cambiante e ambíguo (um mundo VICA).
          Em face dessa realidade, adotar um enfoque transdisciplinar pode ser uma alternativa para enfrentar o desafio, na medida em que, como veremos, permite conceber a aprendizagem como um processo de indagação, no qual se relacionam diferentes campos de conhecimento e de saberes, vinculando-se à compreensão e à práxis de problemas reais. Nesse sentido, não há separação entre quem conhece e o que conhece e/ou procura compreender.


    A transdisciplinaridade como conhecimento de si e do mundo 

          
Influenciado pelo pensamento de Edgar Morin (1981) e seu apelo a “pôr o saber em ciclo”, em vez de continuar “enciclopediando” — como propõe o currículo escolar —, escrevi em 1988 um artigo que foi o antecessor da PEPT. Refiro-me a La globalización mediante projetos de trabajo. Nesse artigo, inspirado em minha tese de doutorado sobre a psicologia ecológica e o pensamento sistêmico, e como resultado da reflexão sobre as experiências pedagógicas como professor e assessor, falava da necessidade de favorecer nos alunos “um sentido da aprendizagem que deve ser relacional quando se propõe aproximar-se da complexidade do conhecimento”.
           Sem saber então, o que Morin dizia — e que intuí como um desafio para levar à escola — era que são os problemas “que requerem a convergência de conhecimentos e não a obrigatoriedade de um programa de curso” ou o conteúdo de um livro didático. O que eu não sabia, como depois descobri com Gaston Pineau (2010), é que essa proposta de globalização estava ligada a um enfoque transdisciplinar que fazia parte de um movimento na pesquisa em torno das relações entre as disciplinas. Esse movimento, que vinha sendo forjado desde a década de 1980, sustenta que existem fontes de saber que não estão necessariamente nas disciplinas e que toda pessoa pode ser uma fonte de saber. Por isso, a transdisciplinaridade não deveria ser vista como uma moda, já que se situa em um processo histórico de longo percurso.
           Indicado o ponto de partida, faço agora a necessária distinção. A diferença entre enfoque transdisciplinar e multidisciplinar é que este último enfatiza a justaposição entre as disciplinas ou conhecimentos, mas sem estabelecer uma interação entre elas. É o que se observa, por exemplo, nas propostas que articulam as diferentes matérias do currículo em torno de um tema. Quando se propõem interações, podemos falar de interdisciplinaridade. É o que ocorre comumente com aqueles que utilizam uma versão linear dos projetos de trabalho. Apenas quando se estabelecem relações recíprocas, quando se pensa e se indaga em rede, é que tem sentido utilizar o prefixo trans, que significa “dentro, através e mais além”, como nos diz Pineau: “Vê-se então como nasce o movimento. Não se está fixo, mas em movimento”.
          Dessa perspectiva, se examinarmos sem preconceitos corporativistas a prática da pesquisa nas ciências experimentais e sociais e nas tecnologias, veremos que nessas três décadas foi-se configurando uma crescente aproximação transdisciplinar no momento de organizar grupos e projetos de pesquisa. Nesse contexto, a transdisciplinaridade caracteriza-se pela formulação explícita de uma terminologia compartilhada e por uma metodologia comum que transcende as disciplinas.
           A partir daí, a cooperação entre pesquisadores consiste em trabalhar diferentes temas, porém conforme um referencial comum que é determinado pelas disciplinas implicadas na pesquisa e exigido pela complexidade dos problemas estudados. A transdisciplinaridade representa, então, a ideia de que a pesquisa baseia-se em um referencial teórico de compreensão compartilhado e de uma interpretação recíproca das epistemologias disciplinares.
           Assim, o que inicialmente foi um programa de pesquisa, que inclusive podemos detectar na teoria do ator em rede ou nas formulações sobre o pensamento complexo, chegou a ser proposto, como registra Lola Jurado (2010), como uma forma de conceber, analisar e atuar na realidade que nos rodeia, religando o conhecimento e a experiência à vida. A partir dessa concepção, tenta-se dar respostas às problemáticas sociais que requerem diversas práxis, integrando uma visão mais ampla e global da relação “humanidade-natureza”, em vez de considerar que as disciplinas que estudam essa relação sejam separadas por métodos específicos ou de pretender a unificação de ciências em um pseudossincretismo uniformizante.
           Vale a pena reler a frase para entender o sentido de “religar” conhecimento, experiência e práxis que nos oferece como base de um enfoque transdisciplinar. Esse enfoque pode ser vinculado ainda ao que passou a ser chamado de modo 2 de conhecimento (Nowotny, Scott e Gibbons, 2010), que é aquele gerado em um contexto de aplicação e de implicação. Tem um caráter transdisciplinar (baseado nas relações recíprocas e não subordinadas das disciplinas) e projeta-se tanto nos referenciais teóricos quanto nas práticas sociais. Refere-se a um conhecimento incorporado nas pessoas, e não apenas codificado nas publicações. Ele revela a heterogeneidade dos atores do conhecimento, que transcendem os produtores, os usuários, etc. No modo 2, a razão reside nas coletividades, e não nos sujeitos individuais. Não é uma formulação teórica, mas tem sua expressão em termos práticos nas organizações, como os grupos de pesquisa.
          Para problematizar a organização do ensino e da aprendizagem no ensino médio a partir desse modo de conhecer e de gerar conhecimento, é preciso examinar o que diz o coletivo Espai en blanc: “Romper com toda uma série de dualidades paralisantes: dentro/fora da academia; teoria/prática; sujeito/objeto. Em outras palavras, não nos colocamos fora porque não existe lado de fora; procuramos pensar a teoria já como uma prática e queremos romper também com a ideia de um sujeito que pensa objetos de conhecimento e de espectadores que ouvem […] para assim poder pensar o que nos acontece e o que acontece” (Garcés e López Petit, 2012, p. 135).
          Estamos, portanto, diante de uma concepção de modos de ser e de estar para os quais confluem e interagem, de maneira relacional e extensa, aqueles que conhecem e o processo de indagação sobre as fontes e modos de conhecer. Essa vinculação é estimulada com a finalidade não apenas de expandir as formas de indagação e compreensão, mas também de intervir na realidade para transformá-la.

          Levar a transdisciplinaridade ao ensino médio

         
O efeito de levar essa concepção da transdisciplinaridade sobre a experiência relacional de conhecer(-se) é que aprender no ensino médio adquire um novo sentido: envolver-se de maneira apaixonada no processo de aprender-conhecer-saber. Para enfrentá-lo, é preciso não apenas vontade política, mas também algo mais radical: romper a lógica do pensar direcional, fragmentário e reprodutivo, quebrando a crença naturalizada de que a educação escolar não pode ser pensada fora do pensamento único dominante.
           Isso implicaria deixar de transmitir e reproduzir informações (que podem ser encontradas no Google) e abrir-se a um processo de conhecer em que as informações são questionadas, contextualizadas e postas em relação para constituir, em um processo relacional, experiências de saber nas quais aquele que aprende sente-se envolvido com o que aprende, porque o que aprende tem a ver com o indivíduo e com a sua necessidade de dar sentido ao mundo, à sua relação com os outros e consigo mesmo.
          Para isso, é necessário transitar de uma informação declarativa a processos de indagação em torno de problemas relacionados com situações da vida real que requerem conhecimentos disciplinares, mas também externos às disciplinas: por exemplo, conhecimentos da experiência e da memória dos atores que intervêm nos processos dos quais nos aproximamos. Pode-se favorecer esse modo de conhecer quando se promovem circunstâncias (o educador como “criador de circunstâncias” de que falava Ferdinand Deligny) em que se experimenta o aprender estabelecendo relações, nexos entre os que aprendem, aquilo sobre o que se indaga e os modos de constituir-se em sujeitos de saber.


                   Uma oportunidade que se abre

         
Quando estava terminando este artigo, tive conhecimento de que, em agosto de 2012, o Ministério da Educação do Brasil levantou a possibilidade de agrupar as 13 disciplinas que constituem o currículo do ensino médio em quatro blocos: ciências humanas (história, geografia, filosofia e sociologia), ciências da natureza (biologia, física e química), linguagens e códigos (inglês, espanhol, português, artes e educação física) e matemática (como área isolada). Com essa decisão, penso que se deu um primeiro passo para superar a concepção fragmentada do tempo, do conhecimento, da docência, do aprender e dos sujeitos que rege o ensino médio.
          Cabe agora, além de celebrar essa porta que se abre, começar a descobrir como concretizar essa possibilidade nas atuais estruturas organizacionais das escolas e nas referências identitárias dos docentes (que representam a si mesmos como professores de uma disciplina). Vale a pena aceitar o desafio que pressupõe poder construir projetos transdisciplinares para a emancipação e o pensamento crítico em um mundo repleto de contradições — um mundo em que a desordem pode ser vista como sintoma de mudança e a dúvida como estratégia de reflexão para continuar aprendendo.
·         Fernando Hernández é doutor em Psicologia e professor da Universidade de Barcelona (Espanha).fdohernandez@ub.edu
 
Créditos das imagens:
Foto de ©iStockphoto.com/DonNichols

REFERÊNCIAS

·         GARCÉS, M.; LÓPEZ PETIT, S. Reinventado Espai en blanc. In: RIBAS LOZANO, A.; GARCÍA-GONZÁLEZ, M.; ÁLVAREZ VINGUER, A.; ORTEGA SANTOS, A. (orgs.) Tentativas, contagios, desbordes: territorios del pensamiento. Granada: Universidad de Granada, 2012. p. 133-152.
HERNÁNDEZ, F. La globalización mediante proyectos de trabajo. Cuadernos de Pedagogía, n. 155, p. 54-59, 1988.
JURADO, L. Meta-transdisciplinariedad y educación. Rizoma freireano, n. 6, 2010. Disponível em:
 http://www.rizoma-freireano.org/index.php/rizoma-freireano-6-meta-transdisciplinariedad-y-educacion.
MORIN, E. El método: la naturaleza de la naturaleza. Madrid: Cátedra, 1981.
PINEAU, G. Estrategia universitaria para la transdisciplinariedad y la complejidad. Rizoma freireano, n. 6, 2010. Disponível em:
 http://www.rizoma-freireano.org/index.php/estrategia-universitaria-para-la-transdisciplinariedad-y-la-complejidad-gaston-pineau.
NOWOTNY, H.; SCOTT, P.; GIBBONS, M. Re-thinking science: knowledge and the public in an age of uncertainity. Cambridge: Polity Press, 2001.


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