Educação
A educação pode mudar a sociedade?
O Brasil tem sido fundamental para que se
reconheça a importância da educação na ruptura de relações de dominância e para
a criação de programas dirigidos a essa ruptura.
Quero começar dizendo que nossas formas comuns de perguntar se a
educação pode mudar a sociedade têm alguns graves problemas conceituais,
empíricos e políticos. Primeiro, é importante entender que a educação faz parte
da sociedade. Ela não é algo alheio, que fique fora. Na verdade, a educação é
um conjunto fundamental tanto de instituições quanto de relações sociais e
pessoais. Ela é tão básica a uma sociedade quanto o são lojas, pequenos
negócios, franquias de restaurantes, fábricas, fazendas, instituições de saúde,
empresas de advocacia, companhias de seguro, bancos, trabalho doméstico não
remunerado no lar e tantos outros lugares em que as pessoas e o poder
interagem.
No entanto, existem outras questões que decisivamente fazem dela não um
conjunto “externo” de instituições e práticas. Tomemos as escolas como um
exemplo. Mesmo que tenhamos a crença ortodoxa de que apenas instituições
econômicas estão no cerne de uma sociedade e que antes de podermos mudar as
escolas precisamos mudar a economia, as escolas são lugares onde as pessoas
trabalham. Pessoal de manutenção de prédios, professores, administradores,
enfermeiros, assistentes sociais, secretários, psicólogos, orientadores,
cozinheiros, guardas, assistentes de ensino — todos esses grupos executam trabalho
remunerado direta ou indiretamente nos lugares que chamamos de escolas. Cada um
desses cargos estabelece um conjunto de relações de trabalho e distinções de
classe vinculadas a si. E cada um é estratificado não apenas por classe, mas
também por raça e gênero.
Nesse sentido, o ensino com frequência é visto como trabalho remunerado
de mulheres, assim como as enfermeiras escolares e as pessoas que geralmente
servem a comida no refeitório da escola. Em muitas áreas, essas mesmas mulheres
que servem a comida não são brancas, assim como os assistentes de ensino em
muitas áreas urbanas. O trabalho de manutenção de prédios geralmente é feito
por homens. As secretárias escolares geralmente são mulheres. Não apenas o
processo de cada um é diferente — embora exista uma significativa dinâmica de
proletarização e intensificação do trabalho dos professores (Apple, 2012): sem
dúvida, a melhor descrição do ensino que já ouvi foi a de uma vizinha,
professora do ensino médio, que disse: “Hoje, mais uma vez, eu não tive tempo
nem para ir ao banheiro!”. Existem também diferenças significativas no
pagamento e no prestígio social aliado a cada um. Logo, seria equivocado ver as
escolas como diferentes da “sociedade”.
Como locais de trabalho remunerado, elas são partes integrantes da
economia. Como locais de trabalho diferenciado, elas reconstituem (e às vezes
questionam) classe, gênero, raça e hierarquias de “habilidade”. E, como
instituições que historicamente serviram como motores de mobilidade da classe
trabalhadora em termos de empregar universitários ascendentes de grupos que,
muitas vezes, são vistos como “não muito dignos de valor” ou mesmo como
“desprezíveis”, tais como pessoas não brancas, elas têm desempenhado um
importante papel como arenas na luta em torno de aspectos como avanço econômico
de classe, gênero e raça.
Minha
história pessoal de ter nascido muito pobre, passar das escolas pobres para
escolas noturnas para me tornar professor e ter feito pós-graduação na Columbia
University documenta partes dessa luta. Ela é o resultado tanto de cooptação
(dar a algumas crianças pobres e da classe trabalhadora a chance de se
realizarem como indivíduos, mas sem mudar radicalmente as estruturas que criam
o empobrecimento) quanto de luta bem-sucedida.
Todavia, não é apenas como lugares de trabalho que as escolas compõem a
economia. Elas também são lugares que estão cada vez mais sendo colocados no
mercado através de políticas de privatização, mercantilização e competição. Em
muitos países, a remuneração dos professores está cada vez mais baseada no
desempenho dos alunos em testes padronizados. E as próprias escolas estão
tornando-se fontes de lucro (Burch 2009; Ball 2007, 2012). As crianças também
estão cada vez mais sendo compradas e vendidas como “públicos cativos” para
propagandear “reformas” como o Chanell One, serviço de televisão com fins
lucrativos e com comerciais obrigatórios que capturou um grande número de
sistemas escolares nos Estados Unidos.
Talvez tenha sido demonstrado que as escolas virtuais comerciais, um
conjunto cada vez mais lucrativo de instituições educacionais, não melhoram os
resultados dos alunos, mas isso não impediu seu rápido crescimento ou sua
habilidade de gerar grandes quantidades de investimento (Apple, em produção).
Portanto, interromper a venda das escolas e dos alunos é uma forma de ação que
desafia a economia. Esta é uma das razões pelas quais muitos de nós temos
trabalhado com outras pessoas em uma aliança com ativistas comunitários em todo
o país para deter a mercantilização das instituições educacionais e sua
transformação em fontes de lucro.
As lutas culturais também são cruciais e, embora estejam profundamente
ligadas a elas, não podem ser reduzidas a questões econômicas sem causar dano à
complexidade da vida real (Apple e Buras, 2006). Tomemos a luta dos
afro-americanos (e afro-brasileiros) contra uma sociedade profundamente
racista. As escolas têm desempenhado papéis centrais na criação de movimentos
por justiça em geral, mas têm sido fundamentais para a construção de mobilizações
sociais de mais ampla escala nas comunidades negras.
Esses
movimentos coletivos transformaram nossas definições de direitos, de quem deve
tê-los e do papel do governo na garantia desses direitos. As escolas são
fundamentais tanto para criar mobilizações duradouras quanto para realçar
habilidades e disposições de interrupção baseadas na construção e defesa das
normas de cuidado, de amor e, em especial, de solidariedade mútua em toda a
comunidade (Lynch, Baker e Lyons, 2009). Por isso, elas também são lugares onde
o que significa ser um cidadão crítico ativo é aprendido por meio da
participação ativa.
Entretanto, isso não é tudo. A educação desempenha um papel social
claramente essencial na formação de identidades, um ponto que é reconhecido com
ênfase na literatura sobre a relação entre ser marginalizado nas escolas e o
crescimento do aprisionamento dos jovens pobres e marginalizados e no material
que critica a super-representação dos alunos negros na educação especial
(Alexander, 2012). Ou seja, os alunos passam grande parte de suas vidas dentro
dos prédios que chamamos de escolas. Eles aprendem sobre relações autoritárias
— e às vezes as desafiam. Eles experimentam o trabalho emocional de gerenciar a
apresentação de si mesmos e também de estar com outros que são tanto iguais
quanto diferentes.
Transformações no conteúdo e na estrutura dessa organização-chave
apresentam efeitos duradouros em termos de disposições e valores que nos
influenciam ou não, em quem pensamos que somos e em quem pensamos que podemos
nos tornar. Cuidado, amor e solidariedade —ou a ausência deles — estão entre os
blocos constitutivos de nossa identidade. Essa questão tem desempenhado um
papel crucial, por exemplo, no trabalho de estudiosos e ativistas
afro-americanos e afro-brasileiros que, por um lado, passaram sua vida
desafiando os modos como as instituições educacionais dominantes e os seus
currículos “mal-educavam” os jovens negros e, por outro, lutaram com êxito pra
criar instituições que constroem identidades coletivas mais poderosas e
transformadoras.
Sinceramente, para mim, essa posição não é apenas intelectual e
política, mas também baseada em experiências pessoais muito intensas. Eu, por
exemplo, tenho muitas lembranças do modo como meu filho Paul foi tratado de
maneira diferente ao longo de toda a sua trajetória escolar simplesmente por
ser afro-americano e dos efeitos realmente prejudiciais que isso teve tanto em
seu senso de identidade quanto em sua compreensão do que era possível que ele
se tornasse.
Contudo,
as escolas e outros ambientes educacionais também fazem parte do aparelho
cultural da sociedade de outras formas além de construir identidades (positivas
ou negativas). Elas são mecanismos fundamentais na determinação do que é
socialmente valorizado como “conhecimento legítimo” e o que é visto apenas como
“popular”. Em seu papel de definir grande parte do que é considerado
conhecimento legítimo, elas também participam do processo em que determinados
grupos adquirem status, enquanto outros permanecem sem reconhecimento ou
minimizados (Apple, 2004; em produção).
Assim, também nesse aspecto, as escolas são o centro das lutas em torno
de uma política de reconhecimento sobre raça, etnicidade, classe, gênero,
sexualidade, capacidade, religião e outras importantes dinâmicas de poder. Cada
vez mais, sob a influência de movimentos direitistas em lugares como o Arizona,
nos Estados Unidos, onde ocorrem ataques danosos aos cursos de estudos étnicos
e a remoção de livros e currículos multiculturais críticos, escolas e
currículos tornaram-se locais de intensos conflitos em torno da memória
coletiva e da amnésia coletiva, aspectos igualmente voltados para a ação
política e educacional.
Sobre a resposta à pergunta no Brasil
Para os leitores brasileiros, é essencial lembrar que o Brasil tem
desempenhado um papel muito importante na resposta a essa pergunta para muitas
pessoas em todo o mundo. Ele tem ocupado um lugar central no reconhecimento da
importância da educação como ponto para a interrupção de relações de dominância
e para a criação de programas dirigidos a essa interrupção. Porto Alegre, em
especial, com suas políticas de Orçamento Participativo e da Escola Cidadã, tem
demonstrado como um sistema escolar pode ser reorganizado para contrariar esses
efeitos prejudiciais, ser o centro de mobilizações da comunidade, desafiar o
que conta como conhecimento oficial, ensinar o Estado e criar condições para
uma cidadania muito mais ativa entre os pobres e aqueles que comumente são
considerados os “outros” da sociedade.
Porto Alegre é um exemplo da importância de uma educação econômica e
culturalmente crítica que tem como um de seus maiores elementos desafiar
identidades socialmente injustas e mudar as identidades de alunos, professores
e comunidades. Classe, raça, deficiência —todos esses aspectos e outros mais
foram considerados com muita seriedade (Apple, 2013; Gandin, 2009).
No
entanto, como muitos de vocês sabem, durante a última década, as políticas de
educação crítica que se mostraram tão importantes em Porto Alegre foram alvo de
ataques da Direita e tornaram-se mais limitadas em seu impacto e em sua
ambição. A Direita também tem uma resposta para a pergunta se a educação pode
mudar a sociedade — e essa resposta tem sido um enfático “sim”. De fato, como
indiquei, a Direita demonstrou reiteradas vezes que compreende plenamente como
usar a educação como um elemento importante em suas tentativas de radicalmente
transformar a sociedade (Apple, 2006, 2013).
Porém, isso torna o Brasil ainda mais importante para o mundo inteiro.
Mesmo diante desses ataques, seja em nível nacional, seja internacional, Porto
Alegre (e espera-se, mais uma vez, todo o estado do Rio Grande do Sul),
continua sendo vista como exemplo de um senso de possibilidade. Isso demonstra
que as lutas relacionadas à educação que continuam sendo travadas no Brasil têm
um poder transformador dentro e fora das fronteiras da nação. Essas políticas e
práticas críticas adquiriram vida própria, mesmo quando estão sendo atacadas no
Brasil. O fato de os neoliberais estarem tão profundamente preocupados com a
mudança na educação para que ela atenda às suas necessidades aponta para o
quanto eles estão preocupados com o poder de uma educação que atende às
necessidades dos pobres e desfavorecidos. O fato de estarem tão preocupados
significa que vitórias na educação foram alcançadas.
Propus que pensássemos de maneira diferente sobre se a educação
transforma a sociedade. Se as lutas na educação são lutas na sociedade, então,
em vez de sermos cínicos, deveríamos voltar a nos dedicar à defesa dessas
vitórias e continuar o que Raymond Williams (1961) chamou tão sabiamente de
“longa revolução” dentro e fora da educação.
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